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Ambiente Tóxico no Trabalho

  • Foto do escritor: Studio Criativo & Estratégico
    Studio Criativo & Estratégico
  • 26 de mar.
  • 9 min de leitura

Atualizado: 27 de mar.



Dr Seiji Uchida e Dr Laerte Sznelwar


Hoje fala-se muito sobre o ambiente tóxico no trabalho, mas é o ambiente que é tóxico? Não é o trabalho que é tóxico? Seria tóxica a organização do trabalho? Ou ainda, o ambiente, a organização e o trabalho é que são tóxicos? Qual o significado dessas afirmações? Elas fazem sentido no que diz respeito à saúde psíquica? Para pensarmos nessas questões, vamos inicialmente consultar os dicionários para termos em mente o que esta palavra significa.


O Novo Aurélio (Dicionário da Língua Portuguesa) nos ensina que é uma palavra que tem origem na Farmacologia: veneno que convém ao arco ou à flecha. Nesse sentido deriva-se o significado de que o que é tóxico envenena, que é um veneno para o corpo, que é uma substância nociva ao organismo e que dependendo da substância (droga) esta produz alterações físicas e/ou psíquicas diversas e pode causar sérias modificações de comportamento além de, comumente, gerar dependência.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa relaciona o tóxico também à Farmacologia e sucintamente define que é o que produz efeitos nocivos no organismo (p. ex., cocaína), que contém veneno e que a nocividade se deve à presença de veneno no organismo.

Logo, podemos sintetizar o tóxico como o conjunto de efeitos nocivos representados por manifestações de sinais ou sintomas que revelam o desequilíbrio do organismo dada a relação entre o agente tóxico com o sistema biológico.


Os dois dicionaristas enfatizam a relação entre o tóxico e o organismo, entre o tóxico e o corpo. É importante termos em vista que não se fala do âmbito psico-social. Pensa-se o tóxico puramente no plano do corpo e aquilo que envenena este corpo. No mundo do trabalho temos inúmeros exemplos da veracidade destas definições. Quando pesquisamos as condições físicas do trabalho em muitas empresas, deparamos com situações de insalubridade, de perigos das máquinas, de produtos industriais, gases e vapores tóxicos, poeiras tóxicas, parasitas, vírus e bactérias que impactam a saúde dos trabalhadores.


Há que se considerar que a questão da toxicidade depende da dose. Desde há muito se sabe que a distinção entre um medicamento e um veneno é a dose; mesmo uma droga considerada como um medicamento pode ser tóxica para uma pessoa, dependendo das condições desta e da dose administrada. Por outro lado, um veneno muito diluído pode, em certas circunstâncias, trazer algum benefício. Pensar na toxicidade não significa apenas pensar nos efeitos possíveis de algum tipo de agente agressivo, mas também a dose, a frequência e, ainda, as possíveis interações entre diferentes agentes, considerando-se também as características e as condições do sujeito.

Até o presente momento, neste artigo, podemos afirmar que a questão da toxidade afeta o corpo, contamina, lesa, machuca, desestabiliza o corpo. Aqui, estamos no âmbito da biologia do corpo. Manter este corpo saudável é essencial. Com o avanço do conhecimento científico e o aprofundamento da compreensão sobre ambientes insalubres, muitas empresas têm buscado melhorar as condições de trabalho para agir preventivamente no sentido não só de evitar os danos físicos, mas também promover a saúde do corpo criando um meio saudável para os trabalhadores. 



Nesta perspectiva se desenvolveu de maneira muito significativa o campo da  toxicologia e da higiene industrial ou do trabalho. Através de diferentes medidas, busca-se considerar a questão da dose e do efeito e as maneiras de reduzir as exposições dos trabalhadores a doses consideradas como de pouco risco ou, quiçá, que não apresentem risco algum. Medidas variadas em termos de controle ambiental são propostas para tanto, desde a mudança de produtos utilizados, o controle da transmissão, a redução dos tempos de exposição e, por último, o uso dos denominados equipamentos de proteção individual.

Mas esta questão não é o foco desta reflexão! Aqui estamos tratando do que se costumou a chamar de “ambiente tóxico de trabalho”, em referência a situações de trabalho que se mostram patogênicas no que diz respeito à saúde mental. Ao tratarmos da saúde mental estamos tratando de algo que é imaterial, de algo que não tem parâmetros mensuráveis e não pode ser detectado por algum aparelho de medição. Não há concretude para o sofrimento patogênico, trata-se de algo imaterial, como todos os sentimentos humanos.


Então, vale a pena fazer uma analogia entre a questão da saúde psíquica e da saúde física, usando o conceito de toxicidade, de ambiente tóxico? Acreditamos que, em um primeiro momento, a título de ilustração, este tipo de analogia pode fazer sentido, contanto que estejamos tratando essa questão com o devido cuidado e com a certeza de que temos um enorme desafio ligado à diversidade de questões que se colocam quando se trata de possíveis efeitos das relações de trabalho, da organização do trabalho, dos conteúdos das tarefas, do sentido do trabalho, das possibilidades de cooperação e do viver-junto. Não se trata de uma relação de causa e efeito direta como aquela buscada para explicar os efeitos tóxicos de uma dada substância. Estamos tratando de fenômenos que exigem um olhar complexo para que possamos identificar e melhor compreender as múltiplas determinações, e quais são as possíveis consequências no âmbito da saúde psíquica da experiência de trabalhar em um “ambiente tóxico”. Talvez possamos adotar o termo “ambiente psicopatogênico” para expressar melhor o que queremos dizer. 


Como todos os fenômenos psíquicos, o sofrimento patogênico faz parte do mundo invisível e só se torna detectável quando, em primeiro lugar, há sensibilidade dos diferentes interlocutores para entendê-lo e, em segundo lugar, quando já se instalaram processos desestabilizadores que redundaram na instauração de defesas para paliar o sofrimento, em distúrbios, patologias e foram diagnósticos. Etapas intermediárias, como aquelas nas quais os sujeitos começam a fazer uso de medicamentos psicoativos para dar conta da situação de trabalho, indicam que já estão perto de algum tipo de colapso.


Por que falar de colapso? Trata-se de um modo de abordar o sofrimento inexpugnável, implacável, isto é, quando o sujeito não dá mais conta, não aguenta mais. Aí podemos também fazer uma analogia com a toxicidade, como uma dose que ultrapassou os limites. Lembrando que não se sabe estabelecer os limites, mas de algo que já se tornou um “trauma”, algo que o sujeito não consegue traduzir, não consegue entender, não consegue transformar em algo distinto, enfim, algo que já não tem volta e o sujeito precisa de cuidados. Mesmo que possamos fazer essa comparação, ligada a algo que transborda, há que se manter distante de qualquer analogia que trate de modo igual fenômenos diferentes, como é o caso de todas as medidas mitigatórias no caso da toxidade física, como, por exemplo, o uso de EPIs.



Também é importante considerarmos que não se trata de algo individual, que dependa da relação direta do sujeito com o trabalho, como se fosse uma relação entre um ser humano e uma coisa. O trabalho nunca pode ser considerado como uma coisa, uma vez que sempre se trata de algo relacional, construído e mantido com o outro, constituído e modulado pelas modalidades de organização do trabalho. No fundo, a organização do trabalho tem um aspecto chave que é o de fazer a divisão entre os humanos, considerando-se como eles serão distribuídos ao longo do processo de produção. Ainda, essa relação é mediada pelos modos como as pessoas são avaliadas e como são construídas as possibilidades de cooperação. Neste sentido, não se trata apenas de uma “psiquê” exposta a um “agente nocivo”, estamos tratando de algo muito mais abrangente que envolve sempre o outro. O outro também pode ser um agente de desestabilização, ainda mais quando se trata de relações de poder constituídas de modo autoritário e não colaborativo, ou seja, ambos que se relacionam também estão submetidos e reagem ao agente nocivo. Muita coisa para relacionar e compreender.



No que diz respeito àquilo que propomos aqui, compreender o que se passa, o que significa o real do trabalho e como os sujeitos enfrentam as suas dificuldades para conseguirem produzir a contento, respeitando a qualidade do que fazem e o espírito das suas profissões é ir muito além de uma visão reducionista de causa e efeito. Assim como a toxicidade de uma substância não é um dado concreto e estático, o que poderíamos chamar de “tóxico” em termos de saúde mental vai muito além de algo mensurável e descrito.


Fazer frente ao real, significa colocar seu corpo e sua psiquê à prova, isto é, há risco! Sabe-se que jamais aquilo que foi previsto e prescrito em uma instituição corresponde àquilo que se confrontam as pessoas no seu trabalho; se elas seguirem fielmente o prescrito, a produção não acontece a contento. Há muito imprevisto e muita incerteza, as pessoas precisam encontrar estratégias para confrontar essa resistência do real e realizar o seu trabalho. Sabe-se que, para tanto, as regras e procedimentos são transgredidos, uma vez que o que precisa efetivamente ser feito não corresponde ao previsto. Não considerar o real, fazer de conta que tudo se passa como pensado anteriormente por aqueles que projetaram a produção e o trabalho, cria barreiras para que se reconheça o que fazem de fato as pessoas. Encarar o real é considerar que são necessárias a inventividade e a criatividade e que elas, de alguma maneira, estão sempre presentes se pensarmos em situações de trabalho propícias para o desenvolvimento das competências, das habilidades, da cooperação, enfim, da construção da saúde.


Mas, o que dizer sobre a saúde mental no trabalho? O que dizer sobre um ambiente tóxico do ponto de vista subjetivo? O que seria um ambiente tóxico? Como criar condições favoráveis para o desenvolvimento saudável do ponto de vista mental? Como compreender o que não vemos? Como relacionar os efeitos das relações de trabalho com as várias maneiras de adoecimento psicológico? Apesar de não vermos as causas e nem as compreendermos, as consequências são visíveis. Genericamente é dito que o ambiente de trabalho “tóxico” é aquele que produz sofrimento patogênico, a emergência de distúrbios, afastamentos do trabalho por ansiedade, por depressão, entre outros. Em casos mais extremos, nos deparamos com casos de suicídio relacionados ao trabalho. Há também outras manifestações do sofrimento patogênico que se expressam no corpo. Problemas cardiovasculares, queda de cabelo, psoríase, problemas respiratórios dada intensa ansiedade, insônia, enxaquecas relacionadas ao trabalho e assim por diante, têm sido cada vez mais recorrentes. A psicossomática ganha cada vez mais relevo na compreensão desses fenômenos.


Quais seriam as causas que estão na raiz dos grandes problemas atuais nas empresas e instituições, isto é, os problemas de saúde mental? Há uma causa única? São vários os fatores? É da responsabilidade das organizações do trabalho? Ou é um problema dos indivíduos? Indivíduos que têm históricos de depressão que no trabalho manifestam? Essas perguntas, mesmo que pertinentes, não podem ser respondidas isoladamente. É evidente que há pessoas que estão mais propensas a desenvolverem algum tipo de distúrbio psíquico. Todavia a questão principal para as empresas e para as instituições não é essa, uma vez que há modalidades de organização do trabalho que induzem ao desencadeamento desses problemas e que precisam e devem ser combatidas. Trata-se de situações nas quais as pessoas não podem se desenvolver enquanto profissionais, não podem desenvolver um trabalho de qualidade, não podem se relacionar bem com os outros, precisam estar sempre competindo com os outros e consigo mesmo, precisam atingir e sobrepujar metas abusivas. A partir dessas afirmações, poderíamos tecer alguma correlação com o que denominamos tóxico. Uma situação de trabalho tóxica seria aquela que tem essas características, na qual o sujeito não dá conta, suas capacidades, inclusive as de resistência, são insuficientes. É quando não há para quem recorrer, uma vez que os relacionamentos com os outros estão comprometidos devido ao dilaceramento dos coletivos acarretados por uma prática de competição exacerbada entre todos.



Para concluir, é interessante se fazer analogias e usar metáforas para ajudar na compreensão e na designação de certos fenômenos. Todavia é importante deixar claro que há o risco de confusão, uma vez que não se trata de coisas iguais, mesmo que haja algo de semelhante entre esses fenômenos. O que é muito perigoso, em analogia ao tóxico, é se constituir pontos de vista ultra simplificadores da realidade, nos quais, tudo é visto de modo direto, sem nuances, onde tudo é raso, plano, sem relevo. 

Qualquer busca de compreensão sobre os fenômenos relacionados à saúde no trabalho precisa se distanciar de explicações muito simples, sobretudo aquelas que imputam uma relação de causa e efeito direta.

Como pudemos observar, estabelecer uma relação de causalidade entre o ambiente e as consequências nos indivíduos é o que comumente fazemos. Estamos habituados e, por que não dizer, educados a buscar sempre para cada situação que inicialmente não entendemos, fatores que expliquem por que determinada situação acontece. Quais seriam as causas que permitem compreendermos? A própria ciência, em algumas de suas vertentes, nos educou a pensar assim. Isso não significa que não há outras áreas da ciência que pense de modo diferente, pelo contrário, situações complexas requerem formas mais complexas e sofisticadas para serem explicadas.


Quando pensamos que há, de um lado, um meio com suas multideterminações e, de outro, consequências multideterminadas, os especialistas chamam a esta relação de uma relação sobredeterminada. Cito este conceito somente no sentido de assinalar que o mundo social é bem complexo e que a simples relação causa e efeito não dá conta da realidade que inicialmente pretendíamos entender.


Estabelecer uma relação de causalidade entre o ambiente e as consequências nos indivíduos é muito comum, uma vez que se busca compreender algum fenômeno do modo mais objetivo e simples possível. Mas será que, de fato, esse tipo de abordagem explica tanto a emergência quanto a disseminação de um fenômeno. A nosso ver, não! Esses fenômenos biopsicossociais requerem modos mais complexos e sofisticados para se compreender os fenômenos, uma vez que os diferentes aspectos dos problemas estão relacionados, interligados. Ainda mais quando se trata de fenômenos multideterminados. A simples relação causa e efeito não dá conta da realidade que inicialmente pretendíamos entender.


Pior são as explicações que atribuem esses problemas a algum tipo de fraqueza dos sujeitos e aí permanecem, sem considerar a sobredeterminação, isto é, as múltiplas facetas ou causas envolvidas, sobretudo aquelas que são de responsabilidades das empresas e das instituições. Deste modo, nos distanciamos de abordagens que procuram tratar a questão da saúde psíquica relacionada ao trabalho de modo simples e a partir de relações causa e efeito. Estamos longe das explicações das vertentes que se baseiam em conceitos comportamentalistas, em conceitos do estresse, em visões simplificadoras dos fenômenos sociais e humanos. 


 
 
 

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