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Ilusões em relação às ações eficazes nas organizações de trabalho com relação à saúde mental

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    Studio Criativo & Estratégico
  • 19 de mai.
  • 9 min de leitura


Dr. Seiji Uchida 


Com o advento das mudanças nas Normas Regulamentadoras, sobretudo aquelas que dizem respeito aos “Riscos Psicossociais”, é importante que façamos uma reflexão sobre os cenários nos quais este tipo de abordagem será implantada para tratar de uma questão que tem afligido tantas pessoas que trabalham em diferentes empresas, sejam ela públicas ou privadas. Este artigo traz uma reflexão a respeito dos desafios que deverão ser enfrentados para que medidas efetivas sejam construídas e implantadas.

Freud, em seu texto Futuro de uma Ilusão, inicia a definição de ilusão dizendo que estas “são realizações dos mais antigos, mais fortes e prementes desejos da humanidade, o segredo de sua força é a força desses desejos”. Prossegue dizendo que uma ilusão não é idêntica a um erro e nem necessariamente um erro. A ilusão, por derivar dos desejos humanos, se aproxima do delírio psiquiátrico, mas, Freud assinala uma grande diferença em relação a este quadro: no delírio existe uma contradição com a realidade, e a ilusão não é necessariamente falsa, irrealizável ou contrária à realidade. Ele alerta que exemplos de ilusões que se tornaram realidades são raras. Nesse sentido, acrescenta o papel da crença na ilusão quando em sua motivação prevalece a realização de desejos. E por isto quando se tem ilusão sobre algo, a crença não considera a realidade e nem a sua comprovação, ou seja, se é real. E como efeito o valor de realidade de muitas ilusões por serem indemonstráveis, dificilmente são irrefutáveis. Nesse momento, Freud, apesar de reconhecer os limites do trabalho científico, defende que a Ciência é o único caminho para o conhecimento da realidade. 

Do ponto de vista psicológico, devemos ter em mente que diversas ideias e ensinamentos sobre fatos da realidade externa ou interna que um indivíduo não descobriu por si, exige a crença. Esta pode ser resultado de um longo processo de pensamento baseado na observação e na inferência ou intuição, mas, vai ser a força do desejo que vai dar sustentação à crença e tornar eficaz a aceitação sem o suporte das evidências científicas. Aqui é necessário introduzir a força de uma certa tradição que cria hábitos, pensamentos, comportamentos, sentimentos, valores que sustentam uma determinada crença. Estas tradições são historicamente determinadas e cada sociedade, cada cultura ao criar uma série de tradições, cria, ao mesmo tempo, crenças sustentadas pelos desejos humanos, tanto no âmbito individual como no âmbito coletivo, como um dado da realidade. Como exemplo, Freud discute a crença religiosa que serve de base para a criação da instituição religiosa. Usando os conceitos da psicanálise, levanta a hipótese de que esta é criada para a proteção contra um sofrimento avassalador: o desamparo individual e coletivo. Segundo Freud, da mesma forma como o bebê necessitou do amparo de um pai, agora coletivamente criou-se uma figura paterna para substituir o pai da infância.

Peter Berger, um sociólogo de tradição weberiana, nos ajuda a compreender como sociologicamente construímos estas crenças. Na realidade, seu projeto é bem mais ambicioso. Seu livro a Construção Social da Realidade busca elucidar como nós, seres humanos vivendo em sociedade, criamos realidades. Ao discutir as origens das instituições, ele afirma que toda atividade humana está sujeita a hábitos, ou seja, qualquer comportamento, quando frequentemente repetido, molda um padrão comportamental que pode ser reproduzido continuamente com economia de esforço. A formação do hábito implica num importante ganho psicológico ao estreitar o número de opções de ações ao fornecer uma direção e uma especialização da atividade. Alivia o indivíduo do acúmulo de tensões resultantes de impulsos não dirigidos tanto conscientes como inconscientes. Este processo de formação de hábitos, segundo Berger, precede a institucionalização e é, ao mesmo tempo, coextensivo ao processo de institucionalização. A institucionalização, aprofundando o conceito, vai sempre ocorrer quando houver uma tipificação de ações habituais por tipos de atores. Nesse sentido, as tipificações das ações habituais que constituem as instituições são sempre partilhadas. Tornam-se acessíveis a todos os membros do grupo social particular e, ao mesmo tempo, a própria instituição tipifica os atores individuais assim como as ações dos indivíduos. Com o tempo, ao ganhar historicidade, estas formações ganham objetividade e passam a ser experimentadas como possuindo uma realidade própria, como um fato exterior e coercitivo ao sujeito. Passamos a falar de um mundo social. Por exemplo, a linguagem para a criança aparece como inerente às coisas e ela não percebe o seu caráter convencional, de construção.

Para Berger, então, a objetividade do mundo institucional é construída e produzida pelo homem. O mundo institucional é a atividade humana objetivada. É importante ressaltar que a relação entre o homem como produtor e o mundo social é de reciprocidade, um age sobre o outro e é agido pelo outro. Logo, a Sociedade é um produto humano. A Sociedade é uma realidade objetiva. O Homem é um produto social. 

Vamos nos ater agora à contribuição de sua Sociologia do Conhecimento que aborda um aspecto importante para a nossa reflexão: esta preocupa-se com a relação entre pensamento humano e as condições sociais sob as quais o pensamento ocorre. Para melhor entendermos a contribuição deste campo científico, vamos reproduzir uma das suas principais proposições: “...a plausibilidade, no sentido daquilo que as pessoas realmente acham digno de fé, das ideias sobre a realidade, depende do suporte social que estas ideias recebem. Dito mais simplesmente, nós conseguimos nossas noções sobre o mundo originalmente de outros seres humanos, e estas noções continuam sendo plausíveis, em grande parte, por que os outros continuam a afirmá-las...É na conversa, no sentido mais vasto do termo, que construímos e fazemos prosseguir nossa visão sobre o mundo. Segue que esta visão depende da continuidade e consistência de tal conversa e que ela mudará quando trocarmos de parceiro”. Isto significa que a plausibilidade desta ou daquela concepção requer articular vários fatores: definições sociais de realidade, relações sociais que aceitam tais definições sem questioná-las, bem como terapias e legitimações que as sustente. A estrutura de plausibilidade é construída dessa maneira. Como consequência, qualquer que seja o caráter ou conteúdo de uma certa concepção de mundo, ela pode ser analisada a partir de sua estrutura de plausibilidade, pois é essencial que um certo indivíduo ou grupo permaneça nesta estrutura para que a concepção em questão permaneça plausível a eles. Como diz Berger, “a força desta plausibilidade, indo de certezas inquestionáveis através de firmes possibilidades a meras opiniões, dependerá diretamente da força da estrutura que a sustenta”. 

Com estas formulações, podemos concluir que a institucionalização através dos hábitos (que se tornam padrões de conduta e são o germe da construção de nossa realidade social), com o processo de exteriorização e a constituição do mundo exterior objetivado e articulado aos nossos pensamentos através das estruturas de plausibilidade, o desejo enquanto crença pode se constituir e ganhar o status de realidade objetiva.

Podemos agora estabelecer um importante paralelo entre a teoria de Berger e as contribuições da Psicopatologia e Psicodinâmica do Trabalho. Dejours em seus primeiros trabalhos fez uma importante descoberta, ou, em outros termos, teve um grande insight. Ele esperava dentro de uma lógica sociogênica causal (o meio organizacional determina os comportamentos dos trabalhadores nele inseridos) encontrar comportamentos descompensados dada as características desestabilizantes de certas organizações do trabalho. Pelo contrário, ele encontrou os trabalhadores desenvolvendo suas tarefas normalmente. Dada a sua premissa teórica daquele momento, era estranho os trabalhadores não apresentarem comportamentos ou sinais de descompensação. Ao encontrar um estranho silêncio em vez de um ruído ensurdecedor de patologias, passou a entender que a normalidade era um enigma. O autor então investiga a razão do comportamento normal nesses contextos. Como psicanalista, levantou a hipótese de que os trabalhadores lançavam mão de mecanismos de defesas ou de estratégias coletivas de defesa. Diante das pressões e injunções da organização do trabalho, os trabalhadores buscavam se defender dos medos, angústias e do sofrimento que a situação do trabalho provocava. Guardadas as devidas proporções hoje, se um grupo de pesquisadores ou peritos do trabalho forem avaliar os riscos psicossociais de uma empresa e seus efeitos patológicos, correm o risco de nada encontrar. Vão possivelmente encontrar, como Dejours encontrou, trabalhadores operando e executando normalmente suas tarefas. 

E mais, vão provavelmente encontrar empresas preocupadas com a saúde tanto física como mental dos funcionários. Empresas com indivíduos em sala de descompressão do stress emocional, salas de meditação, sala de jogos e de relaxamento, intervalos de descanso para a ginástica laboral e assim por diante. Medidas que demonstram a preocupação de manter a performance das pessoas com o equilíbrio psíquico delas. Outras empresas irão levar os funcionários em fins de semana para praticarem rafting para criar um espírito cooperação de grupo, prática de sobrevivência em uma floresta para desenvolver espírito de liderança de uns e, de outro, confiança dos liderados; vão também investir em workshop e programas motivacionais dirigidos por psicólogos organizacionais especialistas para ensinar os gestores a como motivar as pessoas.

Diante do debate teórico até aqui realizado, temos pistas para pensar várias situações de trabalho: encontramos empresas que pensam que é normal seus funcionários, desde a alta hierarquia até o pessoal mais júnior, apresentarem sintomas e quadros de stress, enxaquecas, insônias, obesidade, gastrites, pressão alta tratada com medicamentos, quadros de ansiedade aguda ou crônica e assim por diante. Outras empresas, que oferecem uma série de suporte para a manutenção da saúde mental, pensam que estas medidas são suficientes e não se dão conta que estão atacando somente os sintomas e não as causas que os produzem.

A PDT, através de suas pesquisas e ações, descobriu que o trabalho, e como ele é estruturado por cada empresa, é que está no centro das questões que podem definir o destino das pessoas em termos de saúde ou adoecimento. Para ela, trata-se de sofrimento que o trabalho produz e que pode ter dois destinos. Sofrer para a psicanálise é humano, faz parte, ontologicamente falando, da essência do ser humano. Todos sofremos. O problema é que a organização do trabalho pode definir se o sofrimento vai ter um destino positivo ou negativo. Quando for positivo, teremos um sofrimento criativo que será fonte de crescimento, evolução e saúde mental. Já se o destino for negativo, teremos um sofrimento patogênico. Num primeiro momento, usa-se todos os recursos pessoais e psicológicos para fazer frente a este sofrimento e para poder trabalhar normalmente. Mas quando o sofrimento atinge um nível insuportável, quando o trabalhador utilizou todos os recursos para dar conta do trabalho e não consegue mais trabalhar, irrompe-se a doença. Só neste momento que tanto quem trabalha quanto a empresa vão tomar consciência do problema. Logo, só com a irrupção da doença é que muitas abordagens voltadas para resolver este problema tentarão entender e, se possível, resolver. Mas, como defendemos a partir da PDT, o problema é anterior à irrupção e de outra ordem.

Mas porque é que hoje vivemos esta situação nas empresas? 

Freud nos ajuda a refletir sobre isso através do conceito de ilusão. Com a ilusão os indivíduos não têm consciência de que o que veem como realidade não é real. Berger vem em nosso socorro com o processo de institucionalização de padrões de comportamento. Que torna-se uma realidade institucional, externa, objetiva e que nos coage. Com a estrutura de plausibilidade através das trocas e conversas dentro de um certo coletivo, mantemos como real e verdadeiro o que vivemos, pensamos, sentimos e agimos. Como Freud diz, a ilusão se mantém quando não há o confronto com o real. O problema não antevisto por ele é que a realidade vivida e tornada objetiva e real confirma que a construção ilusória produzida através da estrutura de plausibilidade é verdadeira para os que nela vivem. E mais, a PDT explica a gênese desta realidade dentro das empresas através da construção da normalidade. Usando a antropologia psicanalítica, Dejours nos ajuda a compreender como uma certa cultura organizacional com suas soluções torna-se realidade organizacional. 

O problema no nosso entender é que, mesmo com a irrupção do adoecimento no trabalho, não vai se ter consciência da real origem do problema quando se exclui o trabalho. A visão que hoje começa a predominar nas organizações do trabalho estabelece uma relação direta de causa e efeito entre os vários tipos de adoecimento e os fatores de riscos psicossociais. Quando se estabelece uma relação direta entre as condições sociogênicas das organizações de trabalho e o adoecimento sem a mediação do trabalho, segundo a PDT, sustenta-se uma realidade ilusória. Ou seja, nos termos de Berger, sustenta-se uma estrutura de plausibilidade de uma realidade ilusória, que observamos com frequência em várias organizações do trabalho. 

Mas, ao mesmo tempo, pode-se criar uma nova estrutura de plausibilidade a partir da definição de uma maneira nova de compreender o real e do estabelecimento de novas formas de relações sociais coerentes com esta estrutura de plausibilidade. Nesse sentido, a PDT ao defender a centralidade do trabalho, introduz a possibilidade de rompermos a visão ilusória do mundo institucional do trabalho. E ao entendermos o que esta ciência defende como o real do trabalho e o trabalho real, o trabalho efetivamente realizado pelas pessoas é condição tanto para tratarmos as raízes dos problemas do adoecimento quanto para construirmos uma organização do trabalho saudável. 

À guisa de conclusão, a questão que colocamos é: o que fazer? Como realizar a mudança de olhar defendida pela estrutura de plausibilidade que sustenta a ilusão? Que ações são necessárias para que se passe a enxergar a realidade e o real das organizações? São questões e perguntas que requerem de todos nós uma reflexão que não permaneça na superfície dos acontecimentos. 

 
 
 

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