Quando se relaciona o trabalho à saúde e bem estar isso soa estranho para muita gente. É uma ideia recorrente de que o trabalho é um mal necessário sem o qual não se paga as contas, as mensalidades dos filhos, o aluguel, o supermercado, ou seja, tudo aquilo que é fundamental para manter a nossa vida no dia a dia.
Aqueles que assim se sentem com relação ao trabalho tem o apoio de Freud. Apesar dele ver o valor do trabalho ordinário individual, dizia ao mesmo tempo: “A imensa maioria dos homens trabalha apenas forçada pela necessidade, e graves problemas sociais derivam dessa natural aversão humana ao trabalho”. E se pensarmos na raiz etimológica do trabalho, Freud a seu modo parece concordar com a definição: “trabalho deriva do latim tripalium ou tripalus, uma ferramenta de três pernas que imobilizava cavalos e bois para serem ferrados. Curiosamente era também o nome de um instrumento de tortura usado contra escravos e presos, que originou o verbo tripaliare cujo primeiro significado era ‘torturar’”. E em grego, pónos, seria pena, sofrimento e fadiga.
Apesar da genialidade de Freud, quando refletimos criticamente esta fala, sabemos que ele não tinha condições de fazer tal generalização. Afirmar que a imensa maioria é forçado a trabalhar pela necessidade é uma forma subjetiva de pensar o trabalhar, mas, objetivamente isto requer uma pesquisa mais aprofundada do mundo trabalho. Isto significa pensar a história e a evolução do trabalho ao longo do tempo. Significa pesquisar como se dava o trabalho no mundo antigo, na Idade Média, na Modernidade e na Pós-Modernidade, pois este vai adquirir características singulares em cada momento histórico ao levarmos em conta as determinações particulares de cada época. E isto dentro da tradição ocidental deixando de fora o resto do mundo e suas histórias em relação ao trabalho.
Apesar de termos ciência que devemos situar o trabalho dentro de um determinado momento histórico, dentro de uma determinada sociedade particular com suas determinações econômica, política e sociais, tarefa que deixamos para os especialistas historiadores e sociólogos do trabalho, nossa finalidade é tão somente refletirmos, como dito no início, o trabalho a serviço da saúde e bem estar dos indivíduos. Logo, é possível falarmos em saúde e bem estar relacionado ao trabalho?
Vivemos dentro de um modo de produção e de relações sociais capitalistas. Isto pelo menos durante quatro séculos. O que significa hoje estarmos imersos dentro desta lógica imposta para todos nós? Pensarmos o trabalho em nossa sociedade é de uma grande complicação. Por exemplo, como se dá o trabalho no campo? Desde a grande massa que trabalha ainda manualmente e artesanalmente até aqueles que levaram uma grande revolução ao campo através do uso de tecnologias de ponta. Que diremos do trabalho na cidade? Há uma gama enorme de atividades e serviços hoje que são desigualmente distribuídos, pois dependendo do tipo de trabalho, são necessárias uma série de pré-requisitos (por exemplo, formação superior) que muitos não preenchem. Por outro lado, existem atividades que não requerem nenhum pré-requisito ou cursos básicos para trabalharem. Sem falarmos nas diferenças de idade e de gênero.
Dentro desta heterogeneidade é possível tratar a questão do trabalho de uma maneira rigorosa e precisa? Seria possível contribuir com alguma reflexão sem sermos abstratos? Pelo exposto até aqui tudo indica que qualquer debate que se faça será sempre parcial e local. Não é possível nenhuma generalização que abarque a totalidade do mundo do trabalho. Logo, o que será desenvolvido aqui será uma visão particular do mundo do trabalho, uma visão desenvolvida na França inicialmente e que foi divulgada aqui no Brasil nos últimos 25 anos.
Na década pós Segunda Guerra Mundial iniciou-se um debate sobre os processos de adoecimento mental na França. Buscava-se entender as origens da doença mental e seu tratamento. Esta discussão migrou para o mundo do trabalho na década de 50. Médicos, psiquiatras e psicanalistas de diversas correntes se debruçaram sobre a questão do trabalho enquanto instrumento de readaptação social. Ou seja, pensava-se o trabalho como instrumento de promoção da saúde mental. Mas, neste momento colocou-se a seguinte pergunta: pode o trabalho adoecer? E a resposta foi sim, pode adoecer. Desde então foram feitas pesquisas e propostas de intervenção para transformar situações patogênicas de trabalho.
Esta descoberta em relação ao trabalho patogênico vem a confirmar o lado negativo do trabalho. Dá subsídios para aqueles que têm aversão ao trabalho e trabalham segundo fortes necessidades de sobrevivência.
Mas, ao mesmo tempo, as pesquisas não ficaram somente no âmbito das doenças mentais no trabalho. Na França perguntou-se também se era possível ter prazer no trabalho e consequentemente ter um desenvolvimento saudável, não só sofrimento adoecedor. O que se descobriu foi que é possível sim promover a saúde desde que as condições de trabalho, a organização do trabalho e o sistema favoreçam a emancipação das pessoas.
Ou seja, que os indivíduos possam ser protagonistas e utilizar sua criatividade e engenhosidade para fazer frente aos desafios que qualquer trabalho suscita. O trabalho sempre em algum momento traz imprevistos que requerem o uso da inteligência por parte do trabalhador.
Aqui vamos lembrar o que Hegel diz sobre o trabalho. O sujeito e a realidade é mediada pelo trabalho. Na origem da humanidade, segundo este filósofo, o homem viveu uma dialética na sua relação com a natureza: inicialmente o animal humano de um lado, e a natureza bruta do outro, através do trabalho ele transformou, por exemplo, uma madeira em um barco, e ao fazer isso, ele se transformou em um ser humano, em um sujeito, e a natureza bruta torna-se em uma natureza transformada, ou seja, numa natureza histórica. O sujeito e a natureza histórica têm sua origem num processo mediado pelo trabalho.
Com isto queremos enfatizar o caráter transformador do trabalho. O trabalho é um processo em que quando alguém transforma uma dada realidade, ao mesmo tempo, se transforma. Mas, isto só vai ocorrer se houver condições favoráveis para que isto ocorra. Em outras palavras, quando a organização do trabalho é propício para que o sujeito tenha liberdade para realizar este trabalho transformador. Nem todas as organizações criam estas condições. Pelo contrário, existem organizações que são rigidamente estabelecidas não deixando nenhum espaço para o uso da criatividade. São organizações que engessam a pessoa, no limite robotizam ou transformam em peças numa grande engrenagem produtiva. Este tipo de sistema de trabalho levam à anquilose mental (rigidez de pensamento, dificuldade de articulação).
O importante é ter em mente em relação ao trabalho que quem contribui espera sempre retribuição. Seja na forma de gratidão, de recompensa ou de reconhecimento. Não qualquer reconhecimento e nem sobre qualquer coisa. No mundo do trabalho espera-se o reconhecimento ao trabalho realizado, o valor do trabalho, a contribuição realizada através do trabalho. Quando este reconhecimento não vem, ficamos frustrados, mal humorados, com raiva e no limite adoecemos. O reconhecimento é essencial porque dá visibilidade ao que fazemos e, ao mesmo tempo, ganhamos também visibilidade, ou seja, o quem somos torna-se também visível. O efeito do reconhecimento é o desenvolvimento saudável rumo à emancipação enquanto sujeitos.
Nesse sentido, o trabalho pode estar a serviço da saúde e bem estar dos indivíduos. Obviamente o que foi aqui exposto está no plano da teoria, pois deve-se investigar cada situação particular, cada organização do trabalho, cada sistema do trabalho para podermos afirmar a natureza positiva do trabalho.
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