Por Laerte Sznelwar
Inspirado em uma leitura de um texto de Christophe Dejours sobre a psiquiatria e o neoliberalismo, gostaria de refletir a partir de nossa prática. Dejours coloca claramente os riscos de descompensação psíquica no caso de profissionais da saúde, em especial, médicos, psiquiatras e psicanalistas. A sua clínica de consultório lhe permitiu aprofundar este debate, ao ver colegas em pleno sofrimento devido a práticas de gestão que não condizem com as tradições das profissões da saúde e que estão cada vez mais implantadas em diferentes instituições de saúde pública na França. Qualquer semelhança com o que se passa em nossos hospitais, clínicas e outras instituições de saúde seria mera coincidência.
Ao refletir sobre o que costumamos denominar como gerencialismo, isto é, práticas de gestão inspirados num ideário neoliberal emergem algumas que questões centrais. Entre elas, é importante deixar claro que o que se aplica no mundo do trabalho é bastante voltado para a individualização e para uma definição de que o trabalho é meramente uma questão individual e que o sucesso depende do esforço de cada um e de suas características individuais. Se considerarmos como verdadeiro o fato de que os resultados, isto é, o que se consegue como produção depende de cada um, caímos numa armadilha. Qual? A de transformarmos isto numa falácia, a de considerar que os resultados, o sucesso ou insucesso das ações, sejam meramente dependentes do sujeito, desconsiderando tudo que há de coletivo no trabalho e na produção. Enfim, a partir de uma meia verdade, criamos uma mentira.
Tudo que se fala sobre o sujeito quando nos remetemos exclusivamente à individualidade, é também uma meia verdade; uma mentira portanto. Claro é que se o sujeito não se engaja, nada ocorre! Ainda mais, todos almejam reconhecimento e cenários propícios para o seu desenvolvimento. Nada é apenas individual; todo trabalho é relacional, ainda mais quando se trata de profissões da saúde, baseadas no cuidar dos outros. Todavia, ao centrar no sujeito individualizado, práticas de gestão contemporâneas muito disseminadas, estão ancoradas em propostas que reforçariam o empoderamento de cada um e, consequentemente, permitiriam avaliar o mérito individual. Isto não é bem o que ocorre, uma vez que o isolamento e a falta de companheirismo, favorecem a sujeição e a submissão. Isso ocorre, como bem mostra Dejours, em profissões que teriam muita tradição e que estariam baseadas em valores construindo ao longo de centenas ou até miliares de anos, como a medicina.
Não podemos restringir a nossa reflexão a uma prática que situaríamos em um período histórico do quarto final do Século XX. Essas práticas gerenciais já estariam em gestação desde os primórdios da dita Organização Científica do Trabalho, inspiradas na ideia que seria possível controlar e gerenciar tudo o que se passa no mundo da produção. Apesar de terem uma origem industrial, essas modalidades de organização e, consequentemente de gestão, se implantaram de modo muito amplo no setor de serviços, tanto na esfera privada, como na esfera pública. Conforme mostra Dejours, isso vai mais longe, basta lembrarmos de Maquiavel e La Boetie.
Portanto, não se trata de novidade, mas sim de modalidades de dominação do ser humano por outros humanos, em especial no trabalho, que desconsideram o que há de mais importante em qualquer profissão, isto é, os seus valores, para que servem, que sentido fazem e como contribuem para o desenvolvimento dos sujeitos, dos coletivos, das instituições e da cultura. Trata-se de um debate de racionalidades! Entre o que há de Instrumental (relações meios e fins); o que há de axiológico (valores); o que há de pathico (subjetivo), principalmente; há que se considerar que não basta viver sob o império do instrumental, há que se considerar as outras também quando se propõe a realização de qualquer tipo de atividade de produção.
No texto de Dejours, chama atenção como, após anos de dedicação e de engajamento, profissionais da saúde vivenciam uma crise; crise que se manifesta individualmente, mas que é fruto de uma verdadeira crise de valores. Ressalte-se ainda que esses profissionais da saúde, mas não apenas eles, dedicaram muito de sua vida ao trabalho, mesmo em sacrifício da sua vida familiar e, ainda, de outras facetas da vida, como o lazer e a dedicação à vida associativa e sua ação política.
Gestores que nada ou pouco conhecem sobre o real das profissões da saúde são convocados para implantar medidas que vão favorecer a implantação de sistemas bastante “racionais”, baseados “em evidências científicas” e que serão passíveis de mensuração, uma vez que serão eliminadas as diferentes “subjetividades” que poderiam atrapalhar uma otimização de recursos.
Quando tratamos a questão de recursos, convém colocar em evidência que, no vocabulário da produção e da gestão, muitas vezes, se faz uma equalização de recursos materiais e recursos humanos, entre aquilo que é morto e aquilo que é vivo em qualquer situação de produção. Por uma lado, busca-se racionalizar a produção dos cuidados, a partir de distintas diretrizes, por outro, se introduz muita incoerência e impedimentos para se desenvolver essas ações com qualidade.
Ainda, este autor coloca em evidência que, a sujeição de muitos, quiçá da maioria dos profissionais envolvidos, é evidenciada pelo silêncio, pela passividade e, mesmo pela traição de pares. Uma das explicações seria o medo, medo de enfrentar tamanha força que advém de uma “certeza” de que os métodos de gestão baseadas na individualização seriam os melhores, ou ainda, os únicos possíveis.
Por outro lado, há que se colocar em evidência que existe resistência, não apenas de profissionais da saúde ligados ao cuidado de outros, mas também de gestores. Outras modalidades de gestão são possíveis e precisam ser mais bem conhecidas. Trata-se de um trabalho longo e que precisa do concurso daqueles que já perceberam os riscos e as consequências negativas deste tipo de modalidade de gestão, incluindo outras profissões que não as do cuidado. Quando um gestor se propõe a “escutar o trabalho”, a correr o risco de enfrentar essa visão hegemônica que reduz a produção a indicadores formais e a mostrar que os resultados positivos são fruto de um trabalho de qualidade, isso nos traz esperança. O fato de não estarmos propondo algo que se resume a ideias benfazejas, mas de fatos que podem reduzir o sofrimento patogênico no trabalho e que podem propiciar condições para a construção de modalidades de produção baseadas em algo de fato racional, onde diferentes racionalidades estejam presentes nos processos de gestão e de decisão, que se considere aquilo que há de valores imateriais na produção, abre uma brecha importante.
Pensar que empatia e compaixão não são apenas palavras belas, mas sim a base de algo diferente no mundo do trabalho, poder ser uma maneira de guiar nossa ações e permitir um desenvolvimento da polis em bases bastante distintas da frieza dos números.
Referência: Christophe Dejours - La psychiatrie résiste-t-elle au néolibéralisme? L'information psychiatrique 2017/1 (Volume 93), pp: 39-42 ISSN 0020-0204 DOI 10.1684/ipe.2017.1580
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