top of page

Uma visão crítica dos sintomas de ambientes tóxicos

  • Foto do escritor: Studio Criativo & Estratégico
    Studio Criativo & Estratégico
  • 25 de abr.
  • 9 min de leitura


Dr Seiji Uchida


Num artigo nosso sobre ambiente tóxico no trabalho dizíamos que “podemos afirmar que a questão da toxicidade afeta o corpo, contamina, lesa, machuca, desestabiliza o corpo. Aqui estamos no âmbito da biologia do corpo. Manter este corpo saudável é essencial. Com o avanço do conhecimento científico e o aprofundamento da compreensão sobre ambientes insalubres, muitas empresas têm buscado melhorar as condições de trabalho para agir preventivamente no sentido não só de evitar os danos físicos, mas também promover a saúde do corpo criando um meio saudável para os trabalhadores “. Mas apresentamos que, segundo a PDT, a questão é de outra ordem.

Naquele texto estávamos tratando do que se costumava chamar de “ambiente tóxico de trabalho”, em referência a situações de trabalho que se mostram patogênicas no que diz respeito à saúde mental. Para a PDT tratarmos da saúde mental significa tratar de algo que é imaterial, que é invisível, de algo que não tem parâmetros mensuráveis e não pode ser detectado por métodos quantitativos ou através de algum aparelho de medição. O mesmo podemos dizer em relação ao sofrimento patogênico e aos sentimentos humanos, trata-se de uma experiência pessoal subjetiva. Mas antes de realizarmos a discussão propriamente dita, iremos apresentar alguns dados.

Segundo uma pesquisa realizada por Pereira ACL, Souza HA, Lucca SR e Iguti AM (2019), os transtornos mentais “são a terceira causa de afastamento entre os trabalhadores segurados...os transtornos mentais são responsáveis por mais de 12% da incapacitação decorrente de doenças”. E em relação sobre “a distribuição da concessão de auxílio-doença relacionado a acidente de trabalho ocasionado por transtornos mentais e comportamentais...mostram que as ‘reações ao stress grave e transtorno de adaptação’ têm uma frequência de 31,05% em 52.974 casos, episódios depressivos 27,11% e outros transtornos ansiosos 21,10%”. 

Acrescentamos a estes dados, a partir de nossa experiência, psoríases, queda de cabelo, problemas de pele, gastrites, úlceras, enxaqueca, insônia, infartos, derrames, falta de ar dada a ansiedade, transtornos pós-traumáticos e cegueira histérica. Ultimamente tem ocorrido o quadro que consideramos como o mais grave: suicídio no trabalho. 

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) dada a ocorrência de vários problemas associados ao trabalho, principalmente, o afastamento do trabalho cujo índice tem aumentado nos últimos anos, passou a enfatizar a importância dos fatores psicossociais. Esta Organização alerta ainda que uma série de mudanças no mundo do trabalho tem contribuído para o aumento do stress no trabalho: contratos flexíveis, fragmentação do mercado de trabalho, aumento da carga de trabalho e aumento da pressão, sobrecarga de trabalho sob a égide fazer mais com menos e um grande desequilíbrio entre a vida pessoal e vida profissional. 

A OIT “considera como fatores psicossociais a interação entre ambiente, conteúdo e condições de trabalho, capacidade dos trabalhadores de atender as demandas de trabalho, necessidades e expectativas dos trabalhadores, cultura e fatores pessoais e extralaborais” (Pereira ACL, Souza HA, Lucca SR e Iguti AM. [2019]). Alguns autores falam da nocividade do ambiente de trabalho constituído de vários riscos psicossociais o que nos aproxima do conceito de toxicidade do trabalho.

Observa-se que a maioria das pesquisas e estudos sobre os Fatores de Riscos Psicossociais no Trabalho (FRPT) utilizam os métodos quantitativos para diagnosticarem as condições de trabalhos nas empresas e instituições. Isto leva a sérias questões de ordem teórica, metodológica e epistemológica. Por exemplo, como apreender o invisível, o imaterial da subjetividade e das relações humanas? Como apreender e avaliar o vivido do trabalho, seja a saúde, seja o adoecimento do trabalhador, utilizando métricas quantitativas? Os críticos do uso das estratégias de mensuração quantitativa apontam que um dos principais problemas desta abordagem é a simplificação e o reducionismo de um fenômeno complexo.

Isto significa que o uso de métricas quantitativas hoje ser predominante no mundo do trabalho é preocupante. Uma das grandes razões é que este tipo de avaliação ao não levar em conta o que é essencial, ou seja, o qualitativo e o subjetivo do trabalho, cria impasses que podem acarretar um grande sentimento de injustiça. Por exemplo, os métodos predominantes de avaliação de desempenho ao levar em conta somente os resultados, a entrega, o prazo e a meta ser atingida praticamente desconsideram o que efetivamente as pessoas fazem, como desenvolvem suas ações ao longo do processo de trabalho, como enfrentam as dificuldades, como lidam com as contradições para que possam atingir os resultados mensurados. Ressalte-se que, mesmo com relação aos resultados, aquilo que é visível e mensurável é apenas uma parte deles. Os métodos quantitativos desconsideram os aspectos intangíveis dos resultados, aqueles que dizem respeito à confiança, à pertinência, à aprendizagem, à compaixão, entre outros. O sofrimento, sobretudo o sofrimento patogênico, também é da ordem do invisível e do imaterial. Ele só se torna visível através dos diagnósticos clínicos, do absenteísmo, dos afastamentos, da rotatividade e das aposentadorias precoces.


Horas mal dormidas, 12 a 14 h de trabalho por dia, vivência de pressão que impacta no equilíbrio psíquico, a qualidade da entrega fruto de muita dedicação e engajamento, capacidade de resolver problemas complicados são vivências comuns no trabalho. Trabalha-se frequentemente às custas de sua saúde física e mental. Nada disso conta numa avaliação quantitativa. O mais grave é que este tipo de cenário, essas experiências são cada vez mais consideradas como normais, banais. A normalização e a banalização são maneiras de não se encarar os fatos, ou seja, considerar cenários patogênicos como normais e banais é aceitar que as escolhas feitas pelas organizações são as únicas possíveis e que o trabalhador precisa aceitar e se submeter às situações dadas. Enfim “a vida é assim” e o sacrifício da vida profissional e pessoal seria a regra.

Nesse sentido, alguns autores defendem que os riscos psicossociais têm a ver com as condições derivadas da organização do trabalho que prejudicam a saúde dos trabalhadores. São elencados por eles vários fatores como excesso de exigências psicológicas do trabalhador, falta de autonomia, falta de suporte social, baixo retorno e compensação pelo trabalho realizado, condições temporais para a realização da atividade, ritmo e tempo de trabalho, conteúdo do trabalho, conflito de valores pessoais com relação aos da empresa e insegurança nas situações de trabalho.

É importante destacar as percepções subjetivas que o trabalhador tem com relação aos fatores da organização do trabalho. Estas percepções psicológicas que um trabalhador tem das exigências do trabalho tem a ver com as características do trabalho, sua personalidade, experiências e situação organizacional e social do trabalho. 

Mas, o que seria a percepção e o olhar de quem trabalha? O que seria este olhar segundo a centralidade do trabalho defendida pela PDT? 

Em relação ao olhar, Dejours historicamente em seus primeiros trabalhos apresentou um caso interessante dos trabalhadores da construção civil. Este exemplo permite compreender como ocorre esta percepção das condições de trabalho a que os operários se submetem. Inicialmente trata-se de um trabalho que envolve de modo bastante evidente, riscos de morte. Apesar do risco ser personalizado em algumas condições, por exemplo, um operário cair de um andaime, o risco é coletivo no que diz respeito à maioria das situações de trabalho, pois muitos operários cooperam numa obra comum. Como se trabalha numa situação que suscita o medo? O medo é diferente da angústia que resulta de um conflito intrapsíquico, isto é, uma contradição entre dois impulsos inconciliáveis. Já o medo resulta da percepção de uma situação ou de um aspecto exterior e concreto da realidade que põe o sujeito em risco. O interessante é que, ao se pesquisar estes operários e suas falas, não se encontram indícios ou manifestações deste medo. Pelo contrário, eles encaram de modo natural os riscos do trabalho. E mais, o trabalho na construção civil não é para qualquer um, é necessário ser macho, um cara viril, para não só para trabalhar, mas para ser aceito pelos demais. Alguém que mostra medo, uma “menininha” não tem lugar neste meio. Pesquisas sobre estes trabalhadores observaram um gosto pronunciado pelo perigo e pela performance física demonstrado pelo orgulho, rivalidade e valores ligados à virilidade e à bravura. Isso não significa que não existe o medo, é somente uma fachada como diz Dejours. Não se deve admitir que estes operários não tenham consciência dos perigos, pelo contrário, são os que mais conhecem os riscos do trabalho. Pergunta-se então: por que agem assim, o que contém o medo? A resposta encontrada pela psicodinâmica do trabalho é que esses comportamentos, aparentemente paradoxais, resultam do acionamento de mecanismos de defesa, mecanismos psíquicos que servem para reduzir a percepção do risco e, consequentemente, do medo. No caso da construção civil trata-se de uma estratégia coletiva de defesa por se tratar de um trabalho que envolve o grupo. Coletivamente as estratégias de defesa servem para reforçar essa mudança na percepção do risco, causando uma certa anestesia, como se não houvesse risco neste trabalho e que alguém que se acidenta é por culpa dele. O sistema defensivo de caráter coletivo só vai ser eficaz se simbolicamente for sustentado por todos, ou seja, deve haver uma grande coesão entre os operários. O valor deste sistema defensivo é funcional em relação à produtividade, faz com que trabalhem em prol de atingir os objetivos, mesmo que isso signifique um aumento dos riscos e, finalmente, a participação de todos é fundamental para a sustentação do sistema coletivamente criado. Isto se torna uma verdadeira ideologia defensiva, defendida e disseminada por todos aqueles que participam.

Este exemplo nos permite apresentar a originalidade da proposta de Dejours em relação às outras abordagens. Ao tratar daquilo que é denominado como riscos psicossociais e o impacto na subjetividade, o que mais se torna visível são os sinais e sintomas apresentados, isto é, o resultado mensurável em termos de distúrbios e de doenças. Não se leva em conta as questões ligadas à vivência dos trabalhadores, sobretudo quando o que se manifesta é uma aparente normalidade, onde não se encontram sinais de sofrimento. Todavia só se consegue trabalhar normalmente, porque há uma modificação na percepção do risco, dá a impressão de que não há risco e que os acidentes, caso ocorram, são de responsabilidade daquele que se acidentou, ele que teria criado a situação de risco. Mesmo que esse exemplo histórico esteja ligado à construção civil, é importante ressaltar que não se trata de uma exclusividade deste ramo da economia. Muitas situações de trabalho nos mais diversos setores da produção podem ser avaliados a partir dessas perspectivas, ou seja, avaliar como as pessoas acionam mecanismos de defesas contra o medo causado pelas situações que apresentam risco para sua integridade física e mental.

Ressalte-se que, isso não significa a inexistência de situações de trabalho nas quais há uma grande preocupação tanto com a saúde como com a segurança dos trabalhadores. Há escolhas que favorecem a constituição de cenários seguros para trabalhar e que permitem o desenvolvimento profissional, pessoal e coletivo. Todavia há situações nas quais os riscos relativos ao ambiente, como os de acidentes, de intoxicações e de outros modos de adoecimento ainda são prevalentes. Nestes cenários a emergência desses fenômenos defensivos é muito presente. Por outro lado, há algo mais sútil que se trata da relação entre a saúde psíquica e um trabalho destituído de sentido, pautado em metas inatingíveis, em uma divisão do trabalho que relega às pessoas um trabalhar monótono e repetitivo e, ainda mais, quando se trata de impor a diferentes profissões modos de trabalhar pautado por diretrizes e metas que entram em contradições com princípios que modulam a existência dessas profissões e como eles se constituíram historicamente para servir ao bem comum. 

A partir dos conceitos da psicodinâmica do trabalho, fica evidente que aquilo que fazem as pessoas no seu trabalho é multideterminado, ou seja, não se pode pensar a relação trabalhador e organização do trabalho, ou no presente caso, entre o indivíduo e ambiente de trabalho, numa simples e redutora relação de causa e efeito. 

Escolhemos o conceito de sintoma para frisar que a lista que apresentamos dos problemas associados ao trabalho são efeitos que devem ser explicados. E se recusarmos a relação causa e efeito, não é o ambiente tóxico, ou nos termos dos fatores psicossociais que encontraremos a razão destes sintomas. A PDT defende que a própria noção de ambiente tóxico deve ser revista e este ser compreendido numa lógica maior que a Sociologia do Trabalho nos ajuda a entender. Por outro lado, temos um sujeito da atividade, da ação no trabalhar, que é também o sujeito do inconsciente que usa o seu corpo, a sua inteligência, sua experiência, sua sensibilidade, sua capacidade, sua criatividade, sua engenhosidade para fazer face aos desafios das tarefas que precisa realizar. E sendo o trabalho algo sempre coletivo, entender que o resultado passa pelas relações organizacionais. Mesmo quando há um incentivo para trabalharem isoladamente, competitivamente, individualizadamente, a PDT propõe que se pesquise e busque as razões deste fenômeno dentro das relações multideterminadas a que os sujeitos se submetem. Compreender a fragmentação, a precarização do trabalho tão predominante hoje são fundamentais para se avaliar as possibilidades de transformação desses cenários desoladores. Nesse sentido, acrescentamos uma nova forma de tipo de determinação que transcende a organização do trabalho. A sociedade como um todo num determinado momento histórico e produzindo uma determinada cultura.

À guisa de conclusão, queremos ressaltar que a gravidade das estatísticas relativas aos adoecimentos visíveis no trabalho são explicados por uma ótica que estabelece uma relação de causa e efeito entre os fatores externos, hoje predominantemente denominados de “Fatores de Riscos Psicossociais no Trabalho” (FRPT) e o adoecimento. Todas estas abordagens excluem invariavelmente o trabalho. Não se analisa e nem se leva em conta o importante papel que o trabalho ocupa nas organizações do trabalho e na vida profissional de todos nós. E mais, o que diremos daquelas situações em que é esperado reações psicopatológicas e encontramos indivíduos trabalhando normalmente? Não encontrar o adoecimento é um sinal? A normalidade traria em si um enigma? Como demonstramos, essas abordagens apontadas sequer percebem a existência do sofrimento e as dores das pessoas, pois aceitam a fachada como a realidade em si, ou seja, se todos trabalham normalmente, não existem problemas. Esta é a cegueira que a PDT aponta com relação às abordagens que não levam em conta o lugar central do trabalho na vida dos sujeitos, na constituição das organizações e, da própria sociedade.


 
 
 

1 Comment


Andre Fusco
Andre Fusco
há 6 dias

Difícil falar de dor emocional numa sociedade onde existe apenas o quantificável. Recursos Humanos são números e têm um corpo físico e palpável. Seres Humanos têm um corpo físico e ao mesmo tempo subjetivo. E o trabalho constrói esse corpo. Enquanto não considerarmos nossa humanidade não saberemos lidar com esse sofrimento. Este artigo tem uma profundidade obrigatória!

Like
bottom of page