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Trabalho e Suicídio



Este é um tema desafiador e que suscita muitas indagações. Uma das perguntas que mais fazemos quando nos deparamos com um caso que nos toca diretamente é: por que alguém tira a própria vida? O que leva alguém a cometer um ato tão extremo contra si próprio? Neste momento percebemos quão obscura é esta questão, pois, naturalmente a razão última deste ato vai com aquele que se matou.

Esta é a primeira grande dificuldade. É possível compreender este fenômeno? Como apreender as razões de quem tira a própria vida? Se elas literalmente morrem com aquele que se matou, estamos condenados a jamais entender? Em última instância, estamos colocando o grande desafio que é não só para as pessoas comuns, mas também para os especialistas do campo da saúde mental.

Uma outra pergunta é possível ser feita: é um ato que deve ser entendido somente no âmbito individual? Ou é um fenômeno sociocultural?

Quando pensamos sobre o suicídio no Japão no período do Xogunato (período que o Japão viveu sob o domínio dos Tokugawas) que durou em torno de três séculos, o suicídio tinha um forte componente cultural. Os samurais (bushi) viviam segundo um rígido protocolo (, que no original significa, caminho), ou seja, bushidô.

Quando dizemos protocolo, isto quer dizer que o samurai não praticava o seppuku (conhecido popularmente como haraquiri que literalmente quer dizer cortar a barriga) de qualquer forma. Foi criado todo um ritual, uma verdadeira cerimônia com vestes apropriadas, facas ou espadas apropriadas e gestos apropriados de como cometer o seppuku. As razões do samurai cometer este ato tinham a ver com recuperar ou resgatar a honra perdida para si ou para o clã a que pertencia. Era a pior coisa que podia acontecer para um guerreiro: a desonra estigmatizava-o, envergonhava-o, trazia uma imensa responsabilidade para si e para o clã, e a saída era o samurai lavar com o próprio sangue a razão da desonra. O ato podia ser solitário ou público. O resto da população não vivia segundo este protocolo. Era num certo sentido, privilégio dos samurais.

Trouxe este exemplo para pensarmos como no mundo Ocidental o suicídio pode ser pensado e percebido.

Em geral entende-se como um ato individual. E, nesse sentido, busca-se as razões na vida da pessoa, em sua história, em suas características principalmente psicopatológicas. Por exemplo, observa-se com maior frequência em indivíduos hoje dito bipolares. Antigamente a denominação era psicose maníaco-depressiva, mas com a CID (Classificação Internacional de Doenças – sistema de códigos criado pela Organização Mundial de Saúde) passou a ser conhecido como transtorno bipolar.

Empiricamente observa-se que muitos casos de suicídio ocorrem quando a pessoa começa a sair da depressão e vai para a mania (clinicamente é um quadro de euforia exagerada). Segundo a clínica psicanalítica, a hipótese seria que é na transição de um quadro para outro que frequentemente acontece o suicídio. Ou seja, o indivíduo saiu suficientemente da depressão, mas não entrou suficientemente na mania que evitaria tal ato.

Logo, na tradição ocidental, frequentemente trata-se o suicídio como do âmbito da psicopatologia e, como dissemos anteriormente, estritamente de ordem pessoal. Deve-se à história do indivíduo, seu perfil, problemas e transtornos na relação com o outro e, no limite, alguma herança genética.

No campo da Psicodinâmica do Trabalho (PDT), busca-se compreender este fenômeno no mundo do trabalho, algo que está aumentando no Brasil, com base em um contexto mais amplo; trata-se de visão multideterminada. São vários fatores que agem simultaneamente; a compreensão que se propõe está baseada em um conceito mais elaborado que é o da sobredeterminação. Para tanto é necessário recorrer ao pensamento complexo proposto por Edgard Morin.

Duas são as características das Teorias da complexidade: um novo olhar que concebe a realidade como “um tecido de constituintes heterogêneos inseparavelmente associados”. E que “a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acaso que constituem nosso mundo fenomênico”.

Quando a psicologia social define o sujeito humano como um ser bio-psico-social, para nós significa que ele é determinado no âmbito do seu corpo, no âmbito de sua psiquê, e no âmbito social. Ou seja, ele é sobredeterminado, é o resultado, ao mesmo tempo, de forma indissociável destas três instâncias de determinação.

Para a PDT, quando o sofrimento torna-se patogênico, ou seja, quando o sofrimento é insuportável, são desencadeados vários processos defensivos numa tentativa do sujeito em minimizá-lo. O desafio é compreender essencialmente as condições objetivas e subjetivas das questões relacionadas com o trabalho: a organização do trabalho, o trabalhar das pessoas e suas relações interpessoais no interior desta organização e, em última instância, a sociedade neoliberal que individualiza ao extremo as pessoas, para tentar compreender este ato tão extremo.

Do ponto de vista das instituições, a evolução dos métodos de organização do trabalho constituiu-se em uma verdadeira revolução que aumentou consideravelmente a pressão produtiva, por um lado, e o isolamento e a solidão, por outro. O aumento das patologias mentais ligadas ao trabalho resulta essencialmente da fragilização gerada por métodos de organização que, no lugar da confiança, da lealdade e da solidariedade, instalam no mundo do trabalho o cada um por si, a competição exacerbada, a deslealdade, a desestruturação do convívio, produzindo uma implacável solidão em meio à multidão.

Logo, a partir das pesquisas da PDT, hoje sabemos que a invisibilidade do fazer, o isolamento, a situação de aridez no trabalho a que se é submetido, a falta de reconhecimento do seu trabalhar, a falta de espaço para poder expressar o sofrimento, a falta de solidariedade, são componentes importantes que geram o sofrimento patogênico.

No campo da PDT há concordância com as contribuições de psicanalistas sobre o suicídio, em geral: as pessoas não se matam pensando em tirar a própria vida, se matam para eliminar um sofrimento insuportável. Assim, ao desejarem se livrar deste sofrimento, “percebem” que, para conseguir tal intento, adotam o modo extremo, se matam.

Observamos este fenômeno do mesmo modo no mundo do trabalho: quando o sujeito trabalhador é levado ao extremo do sofrimento patogênico, quando as defesas são insuficientes, quando não há acolhimento e guarida, quando as abordagens dos profissionais de saúde não resultam em melhorias …. há a saída de se matar. Obviamente, a razão de cada um do ponto de vista pessoal, sua relação com o trabalho, com a hierarquia, sua vida pessoal vai com ele. É no quase suicídio que temos pistas para pensar na etiologia do suicídio. Sabemos, segundo a PDT, que as pessoas criam uma série de mecanismos e estratégias de defesa para fazer frente ao sofrimento no trabalho. O sofrimento patogênico chega ao seu limite quando todas as defesas construídas falharam e o indivíduo entra em colapso. Ao que tudo indica, quando não há mais defesa possível contra este sofrimento, o indivíduo poderá lançar mão deste ato tão extremo.

Hoje o silêncio que sempre se abateu nos casos de suicídio no trabalho, inclusive com o conluio consciente e inconsciente das pessoas numa organização onde ocorreu tal evento, está se tornando ensurdecedor. O próximo passo tem sido responsabilizar a pessoa que se mata, colocando toda a responsabilidade no indivíduo.

A partir dos conceitos e propostas da PDT podemos questionar este tipo de reducionismo e simplificação de uma realidade que tem relações e conexões tão invisíveis e, para muitos, incompreensíveis. Ao compreendermos através de um pensamento complexo as multideterminações deste ato, espera-se que consigamos lançar luz sobre este fenômeno para que se crie ambientes organizacionais saudáveis e que os sujeitos trabalhadores, se desenvolvam e se emancipem. Para tanto há que se propiciar condições para viver-junto e para o desenvolvimento de modos de cooperação baseados em valores e tradições das profissões e do sentido que o trabalho tem para cada um e para os coletivos.



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