Comentários sobre o livro - O que há de melhor em nós de Christophe Dejours
- Studio Criativo & Estratégico
- 18 de ago.
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Christophe Dejours, em seu novo livro O que há de melhor em nós, repõe o papel central do trabalho na vida humana, na construção das instituições e da própria cultura. Esta questão, apontada numa nota de rodapé do texto de Freud, Mal-Estar na Civilização, foi praticamente ignorada pela maioria dos psicanalistas.
Estabelecer um diálogo para debater esta questão é importante, pois defendemos que o trabalho em si, considerado como uma atividade socialmente reconhecida, é parte substancial dos processos de subjetivação ao longo da vida. Se Freud se refere, em seu texto, à importância do trabalho extraordinário da ciência e da arte, ele, em uma extensa nota de rodapé, reconhece o lugar do trabalho ordinário para a maioria das pessoas, sobretudo no que diz respeito à coesão social.
Os autores ligados à psicodinâmica do trabalho, ao defenderem a centralidade do trabalho, reforçam o lugar essencial que este ocupa na vida das pessoas em geral, sejam eles trabalhos de produção em qualquer setor da economia ou, ainda, aquelas atividades desenvolvidas por pessoas sem serem remuneradas. Portanto, trabalhar não diz respeito apenas àquilo que se considera como relativo às modalidades de emprego, de contrato; incluindo os processos de precarização das relações de trabalho. Há que se considerar também o trabalho de reprodução e muitas atividades invisíveis às estatísticas sobre emprego e produção, como as diferentes atividades do cuidar. Há muitas atividades que podem ser consideradas como trabalho, fundamentais para o desenvolvimento da sociedade e da cultura que não são reconhecidas como tal.
Ressalte-se que, para Freud, há um enigma no que diz respeito à importância do trabalho ordinário na vida dos humanos e na sociedade. Apesar de não ter desenvolvido este tema, ele já abriu as portas para esse debate uma vez que ele não compreendera como os seres humanos podem se ligar tão fortemente a atividades que ele considerava como não sublimatórias. Depois dele, não houve uma continuação desse debate pelos psicanalistas, exceto o proposto por Dejours, desde os idos dos anos 1980, a partir da sua proposta da dupla centralidade, a da sexualidade e do trabalho.
Ao longo do desenvolvimento da Psicopatologia do Trabalho para a Psicodinâmica do Trabalho, Dejours reforça ainda mais a ancoragem no seu pensamento na antropologia psicanalítica e, não apenas, para tratar do sujeito do trabalho. Esta referência à psicanálise mostra como ela fornece conceitos essenciais para a construção do pensamento de Dejours. Por exemplo, o conceito de sublimação, processo no qual os impulsos sexuais sofrem transformações em ações. “Sublime”, aqui, significa aquilo que é o topo e socialmente o mais valorizado e, também uma transformação de estado, daquilo que é pulsional em algo elaborado e com referências ao fazer, ao agir no mundo para construí-lo e cuidar dele. Freud, trata da sublimação fazendo referência apenas ao trabalho nas ciências e as artes, mesmo que, conforme já explicitado, ele deixa uma dúvida no ar com relação ao trabalho ordinário. Dejours afirma que todo trabalho teria esse potencial, sobretudo se as modalidades de organização do trabalho constituem cenários propícios para tal. Modalidades que respeitem os desígnios das diferentes profissões.
Aprendemos com a psicanálise que a constituição da subjetividade e do inconsciente ocorre na relação com o outro, pois é sempre bom lembrar que vivemos com os outros, para os outros e dependemos dos outros. Isso se dá na própria relação psicanalítica. Não ocorre o mesmo no trabalho? O trabalho não seria fundamentalmente relacional? Apesar da falácia, hoje, de que nós somos empreendedores e o empreendimento de si, não se pode negar a realidade da interdependência das pessoas através do trabalho. A individualidade e a singularidade são importantes, mas nada existe sem o outro.
Dejours propõe, no livro, questões desafiadoras para refletirmos. Por exemplo, ao longo do texto, mostra que a criatividade não é exclusividade de poucos, mas que se expressa no confronto com a resistência do real; estaria presente em todas as atividades humanas. A partir da resistência do real, os humanos desenvolvem diferentes tipos de estratégias para atingir suas metas e objetivos. Nesta ação está imbricado o corpo uma apropriação do mundo, na qual este ocupa um lugar central. Através do trabalho transformamos o mundo e nos transformamos.
Mas nem tudo é positivo no trabalhar do ponto de vista do sujeito. Dependendo do sistema de trabalho, o trabalhador pode se ver em risco, ou seja, no risco do trabalho antissublimatório, psicanaliticamente falando, sob a égide da pulsão de morte. Um grande exemplo é o trabalho desprovido de sentido que leva os trabalhadores ao sofrimento patogênico, fonte de empobrecimento da subjetividade, de distúrbios e de adoecimento no trabalho.
Para Dejours, fica evidente que as modalidades contemporâneas de organização do trabalho podem ser tão ou até muito mais nefastas no que diz respeito à emergência de distúrbios psíquicos do que o próprio taylorismo que abriu as portas para um processo de empobrecimento do conteúdo do trabalho, incluindo a ideia de que o ser humano pode viver trabalhando de modo repetitivo e sob constrangimento de tempo. Isso também diz respeito àquilo que o Dejours define como a “loucura da norma”, incluindo questões como a “gestão por números” e os processos de normalização, que são impostos igualmente a atividades no setor da saúde.
O importante a salientar é que os riscos não dizem respeito somente à saúde mental dos indivíduos que trabalham, mas também ao futuro da vida nas organizações e até à democracia. Isto porque as atividades consideradas como antissublimatórias, muito presentes em nossos cenários de trabalho, podem impactar o futuro da própria cultura. As escolhas organizacionais que desprezam a importância de se desenvolver um trabalho ancorado em valores e tradições profissionais e calcadas na perspectiva do desenvolvimento pessoal e coletivo são um risco. Este risco é exacerbado pelas escolhas oriundas do neoliberalismo, que se expressam em modalidades de organização do trabalho e de gestão calcadas no individualismo e no desprezo àquilo que há de coletivo no trabalho.
Dejours contribui com um caso clínico bastante significativo, um caso de consultório, para nossa reflexão. Este trabalho não é fruto de uma ação em psicodinâmica do trabalho, mas do seu trabalho como psicanalista. Ao nos apresentar uma construção fundamental e bem estruturada sobre a relação profícua entre a psicanálise e a psicodinâmica do trabalho, a partir de agora ele utiliza essa argumentação para a fundamentação deste livro.
Outro tema importante tratado neste livro, é a discussão sobre a psicanálise como profissão. Dejours enfrenta esta polêmica, defendendo a ideia que a psicanálise mobiliza aptidões diversas como todas as outras profissões, como a técnica, o método, as regras e os objetivos. Além disso, há que se considerar a questão doutrinária e as tradições. Pode-se afirmar que todo trabalho inserido numa perspectiva profissional tem algo de artístico, de singular. E mais: em todas as atividades de trabalho a presença do corpo é exigida, inclusive a do psicanalista. Trata-se de uma ilusão imaginar que o psicanalista trabalharia apenas com o espírito, com a psique, num trabalho sem corpo.
Há outra característica que reforça o argumento de que a psicanálise é uma profissão, trata-se da transmissão do conhecimento. Há diversas atividades envolvidas, e ela requer um longo período de aprendizagem do candidato a psicanalista: análise pessoal, supervisão clínica, estudos em grupo e participação em seminários. Qualquer atenuação no sentido de reduzir os tempos, as exigências e os rigores do processo de capacitação dos analistas é diminuir a importância dessa profissão.
À guisa de conclusão, Dejours traz uma contribuição significativa para o aprimoramento do conceito de sublimação. Ao propor a noção de sublimação extraordinária ele nos coloca frente a questões ético-morais que precisam ser consideradas em qualquer situação de produção e de trabalho. Para ele, a sublimação ordinária pode advir do reconhecimento do trabalho desenvolvido em situações que são condenáveis do ponto de vista ético. Alguém que age com zelo para fazer o mal, pode ser reconhecido, em determinadas situações, o que pode favorecer certos processos de subjetivação. Todavia, para Dejours isto não basta! Portanto, há que se considerar que o trabalho deve estar relacionado com questões mais amplas e que dizem respeito à cultura e ao cuidado com os outros e com o mundo no qual vivemos.
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