Que fazer?
- Studio Criativo & Estratégico
- 17 de jun.
- 9 min de leitura

O que fazer quando as pessoas que trabalham em diferentes organizações se sentem como peças de um sistema, como partes descartáveis e que precisam sempre mostrar que devem atingir metas continuamente crescentes?
O que fazer quando os distúrbios e doenças psíquicas tornam-se uma preocupação de todos, gestores, integrantes de poderes públicos, sindicatos e os trabalhadores, em todos os níveis da hierarquia?
O que fazer quando se percebe que há cada vez mais pessoas que se desengajam do trabalho, que vivem sob a égide de um cinismo defensivo, necessário para dar conta das exigências de um trabalho que, cada vez mais, perde o seu sentido?
O que fazer quando, cada vez mais as profissões se tornam menos atrativas para aqueles que querem desenvolver um trabalho de qualidade, com uma perspectiva de construir uma carreira na qual se sintam contribuindo para a empresa ou instituição em que trabalham, para a construção daquilo que há de comum na sociedade?
O que fazer quando, uma vez mais na história do mundo, há uma tendência de desqualificar o trabalho e os trabalhadores e que reforçam a sensação de ser uma coisa a serviço de algo de que não se acredita, pois trabalha-se sob o controle crescente das máquinas que leva à evitação e ao isolamento do contato entre as pessoas?
O que fazer quando a ideologia do individualismo refuta o que é fundamental no humano, o viver-junto, a cooperação e a solidariedade?
O que fazer quando se vive a experiência de estar em competição contra todos para conseguir atingir objetivos que não são os seus; competindo inclusive consigo mesmo? Quando se vive a sensação de trair seus valores com relação aos outros e a si próprio?
O que fazer quando as iniciativas para se constituir modelos de organização do trabalho mais cooperativos, que minimizam o sofrimento patogênico, não são valorizados e considerados pouco confiáveis?
O que fazer quando os valores profissionais não são respeitados e desenvolvidos, não sendo possível desenvolver os profissionais enquanto sujeitos e enquanto coletivo para que as empresas e as instituições cumpram os seus desígnios?
O que fazer quando os modelos organizacionais mais prevalentes fortalecem um certo pragmatismo, baseado em ideias ultra simplificadoras, que responsabilizam os indivíduos pelos seus problemas de saúde e pelos problemas de produção? Que favorecem apenas medidas pontuais e paliativas para tentar resolver um problema sistêmico? Que é devido às escolhas feitas por aqueles que dirigem as organizações?
Os exemplos que corroboram essas questões são inúmeros e há fortes indícios de que a adoção de medidas pontuais não resolvem o problema, em sua essência. Mesmo que, em um primeiro momento, os resultados de intervenções baseadas no reforço da capacidade das pessoas em suportarem as situações de trabalho e seus constrangimentos organizacionais, podem ser positivos, o problema persiste. Isto tanto para as pessoas que continuaram a trabalhar sem interrupções, como para aqueles que, por motivos distintos e, sobretudo, os de saúde, tiveram que se afastar do trabalho e buscar retornar à atividade profissional. É comum a adoção de um ponto de vista que nega a possibilidade de se construir modelos organizacionais distintos daqueles que são predominantes, aqueles que reforçam o individualismo e a coisificação das pessoas.
Na perspectiva por nós adotada, a das ciências do trabalho, em especial, a da psicodinâmica do trabalho, o modo de pensar a organização do trabalho é outro. Neste caso, o trabalho é pensado como protagonista da produção e a relação que se estabelece a partir dos modelos organizacionais é fundamental para o desenvolvimento dos sujeitos, da qualidade de sua ação, do reforço da cooperação e da solidariedade; enfim, para o desenvolvimento de um trabalho de qualidade que preserve tanto os valores das profissões quanto o respeito a preceitos éticos-morais relacionados à produção.
Propomos um debate e uma adoção de medidas concretas que construam cenários para que o trabalho seja efetivamente uma mediação privilegiada entre a subjetividade e o sistema de trabalho e que respeita a centralidade do trabalho para o desenvolvimento humano e para a construção da cultura.
O homem-animal, ao transformar a natureza bruta através do trabalho, se transforma em um homem da cultura, de um lado, e de outro, teremos uma natureza transformada, agora uma natureza histórica e socialmente determinada. O produto do trabalho é uma síntese tanto do homem como da natureza. Por exemplo, quando um homem constrói uma canoa a partir de uma árvore. Na canoa está inscrita a força, a habilidade, a ideia de canoa, a sensibilidade estética, ou seja, a subjetividade do homem. Ao mesmo tempo, na canoa está inscrita a natureza da árvore, sua dureza, sua resistência, sua maleabilidade, sua durabilidade, agora ela é natureza transformada pelo trabalho e se torna uma coisa útil com uma certa finalidade. O trabalho é este processo transformador. O trabalho tem este poder transformador em que nada mais será o mesmo após o processo que muda continuamente a realidade e, simultaneamente, a própria pessoa que trabalha.
O problema surge quando o foco é no indivíduo e sua entrega, sem levar em conta as injunções da organização do trabalho que determinam o modo como o trabalho vai ser realizado. Assim, prevalece nas empresas, uma visão de que o prescrito basta por si só, que as regras, os regulamentos, os procedimentos formais são suficientes e que precisam ser respeitados à risca, ao invés de terem um papel de referência para a realização do trabalho. Esse papel de referência deveria, ao nosso ver, ser sempre baseado nas tradições e regras das diferentes profissões envolvidas, mesmo que sejam consideradas como novidade devido ao desenvolvimento da sociedade e das técnicas.
O mais grave, ao nosso ver, é quando aquilo que compõem o universo do prescrito se torna o principal critério para se avaliar o que ocorre nos sistemas de produção. Passou-se a usar métricas quantitativas para avaliar tudo, inclusive o desempenho de quem trabalha. Criou-se um cenário ilusório, no qual é possível tudo controlar e favorecer as condutas que estejam balizadas por metas de desempenho e que isto seria suficiente.
Todavia o trabalho efetivamente realizado não entra neste tipo de avaliação, ou seja, todo o lado qualitativo do trabalho não aparece. É tornado ainda mais invisível, relegado às profundezas de cada um. E mais, no caso dos gestores, utilizando todo o arsenal conceitual criado pelos gurus da administração, buscam avaliar o comportamento dos trabalhadores ao invés do trabalho real. Comportamento do tipo, se é um bom líder, se não está acomodado na zona de conforto, se é “resiliente” em relação às pressões de trabalho frequentemente insuportáveis, se é ágil e criativo para fazer mais com menos, se apresenta as várias habilidades para desenvolver trabalhos muitas vezes sem sentido, se são motivados e engajados, se são sorridentes e alegres para tornar o ambiente agradável e se são cooperativos em trabalho de equipe. Tudo isso reforça a ideia da criação de cenários fantasiosos, falsos portanto. Ao invés de se criar cenários de produção propícios para o desenvolvimento pessoal e coletivo, o que se produz são cenários propícios para o desenvolvimento da desolação. Assim, ao se excluir o trabalho, ou ainda, o trabalhar, uma vez que se trata de um engajamento dos sujeitos para produzir; quando a gestão é baseada quase que exclusivamente em indicadores, sem se considerar o real que precisa ser enfrentado pelos trabalhadores, cria-se um sentimento de injustiça, propício para o surgimento do sofrimento patogênico, o que favorece o surgimento de defesas e, também, do adoecimento.
O que fazer? A proposta que defendemos, baseada na PDT é trazer a visibilidade ao trabalho efetivo e, consequentemente, valorizar o papel do humano para que a produção aconteça. Tornar visível o esforço de quem trabalha, a sua engenhosidade em resolver uma série de imprevistos que são muitas vezes invisíveis para os gestores, tornar visível a experiência, a destreza, a inteligência que envolve o corpo em múltiplos tipos de atividade, tornar visível a técnica que leva muitos anos a ser desenvolvida e a ação propriamente dita, são fundamentais para que se possa transformar esses cenários desoladores.
Trabalhar desafia os sujeitos, é cheio de imprevistos, exige o desenvolvimento de competências e não o contrário, exige que estejam engajados com seu corpo, sua inteligência, sua subjetividade para conseguir vencer os desafios. Trabalhar é enfrentar o real, definido, por Dejours, como aquilo que no mundo do trabalho se faz conhecer por sua resistência ao domínio técnico, à maestria da pessoa. Isto é consubstancialmente ligado ao fracasso, pois, momentaneamente, o imprevisto se torna um enigma. Que se faz conhecer afetivamente, ou seja, envolve frustração, raiva e irritação diante do imprevisto. Que gera sofrimento. Requer, nesse sentido, o uso da inteligência e da engenhosidade para a sua solução. Ou seja, para enfrentar a realidade do trabalho é necessária a mobilização de uma inteligência fundada no corpo como um todo, uma inteligência astuciosa. Ao sobrepor a resistência do real, tanto no que diz respeito ao exterior como ao interior, com relação à nossa subjetividade, é possível transformar o sofrimento em prazer. Para tanto, é necessário o reconhecimento dos pares e de outros atores, como a hierarquia e os destinatários da atividade desenvolvida. Para tanto, o que está em questão é a utilidade e a beleza do trabalho, beleza no sentido do respeito às regras do ofício e da singularidade da contribuição de cada um.
Adotamos o ponto de vista que o trabalho vai ser então definido como atividade coordenada, desenvolvida por homens e mulheres para fazer face àquilo que não foi prescrito pela organização do trabalho. Lembrando que para haver esta coordenação é essencial o desenvolvimento de relações de cooperação, fruto de relações de confiança. A dificuldade da construção da cooperação reside no fato que ela não pode ser imposta, pois depende da vontade de quem trabalha, depende de criar um espaço de discussão e deliberação que possibilite a cooperação. Logo, a entrega, nesse sentido, é o resultado de um processo complexo, não um simples número, uma data, uma meta quantitativa.
A proposta é de desenvolver sistemas de avaliação que sejam alternativas ao existente que são focados nos resultados do trabalho e baseado em indicadores numéricos. Para tanto é fundamental que se constitua alternativas organizacionais com a criação de dispositivos que permitam aos sujeitos envolvidos mostrarem o que efetivamente fazem, que possam discutir e confrontar pontos de vista, que possam elaborar em conjunto sobre diferentes aspectos do seu trabalhar; recriando as regras do trabalho para poder favorecer o que há de útil e belo em um trabalho bem-feito. É importante salientar que os processos de avaliação estão baseados na perspectiva do fazer e não do ser. Um fazer que não está afeito simplesmente à tarefa, ao prescrito, mas sim, ao que é efetivamente realizado. Para tanto, muitas vezes, é necessário que a ação de um sujeito dependa de sua astúcia, da capacidade de contornar as dificuldades encontradas e, para as quais, o prescrito não favorece saídas. Por isso, qualquer sistema de avaliação do trabalho deve ser baseado em diferentes perspectivas. A primeira é a possibilidade de julgar a utilidade do que é feito, a segunda é a possibilidade de julgar a partir de critérios de beleza, feito por aqueles que de fato conhecem o trabalho efetivamente realizado, ou seja, os pares.
Mas, para que haja um julgamento justo é necessário que as relações tanto verticais como horizontais sejam calcadas na confiança. Sem a confiança não haverá cooperação e coordenação das atividades, pois, como dito, depende da boa vontade das pessoas. Num mundo onde impera o individualismo e a competição, defender que se crie relações de confiança significa uma escolha organizacional que vai contra as determinações sociais hegemônicas. Ou seja, requer grande coragem para implementar estes espaços nos quais seja possível usar a palavra de modo livre e efetivo. Além disso, trata-se de dispositivos organizacionais, de espaços voltados para a deliberação coletiva.
Cabe também ressaltar que para a PDT confiança não é um sentimento. É uma construção de relações fruto de um intenso debate para se chegar a acordos acerca das regras do trabalho e da arte de realizar um bom trabalho. Os acordos são como um contrato de trabalho: exigem direitos, deveres e punições no mundo do trabalho. Nesse sentido, os acordos devem ser reiteradamente repostos e revisados dada a dinâmica das organizações de trabalho.
No que diz respeito às relações hierárquicas, defendemos o desenvolvimento da capacidade de escutar o outro. Como esta escuta tem como referência a psicanálise, ressaltamos que se trata de uma escuta respeitosa, arriscada e, que, de fato busca-se compreender o outro e favorecer a troca de ideias e pensamentos. Compreensão aqui não significa necessariamente concordância com o outro, escuta-se também para melhor discordar.
Estas regras devem valer também quando se discute o trabalho e sua realização dentro de um coletivo. As pessoas devem aprender a ouvir o outro mesmo que seja uma discussão acalorada, atravessada de conflito e discordância, o que frequentemente acontece nas organizações. Cabe à liderança estabelecer estas regras em reuniões de equipe para que haja uma verdadeira escuta, tanto verticalmente como horizontalmente. Ressalte-se que o silêncio, isto é, quando ninguém se expressa, ou ainda, ninguém se expressa verdadeiramente, é um grave sinal de patologia organizacional. Quando não se quer mais discutir, debater, colocar suas ideias e experiências, algo de grave está acontecendo
Enfim, o que defendemos diz respeito a se valorizar o trabalho efetivo e não apenas o resultado medido. O que há de imaterial, de qualitativo no trabalhar das pessoas é a base de nossas propostas de transformação nas organizações. Isto significa não apenas aprender a ouvir, mas aprender a ver o que não é visível, para cenários de trabalhos calcados na confiança e propícios para a construção do reconhecimento da contribuição de cada um e do coletivo, favorecendo avaliações mais justas. Isto pode favorecer a construção da identidade do profissional e de situações de trabalho mais saudáveis. Trata-se de grandes desafios para todos nós que podem servir para a construção não apenas de organizações que, efetivamente contribuam para a construção da saúde de quem nela trabalha, mas, sobretudo, da cultura de um modo mais amplo.
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